Laranjas da Vilariça – Doçura de Antanho e Memórias da Terra

Laranjas da Vilariça – Doçura de 

Antanho e Memórias da Terra

"Menina quer laranjas?" e eu fiz uma torta😂

foto: ruralea

Chega a primavera e com ela a promessa dos campos cobertos de ouro – não é ouro de metal nem de artifício, mas sim o das laranjas que amadurecem nos pomares fundos e férteis do Vale da Vilariça. Ali, entre montes guardados pelo sol e pelo Douro, crescem as laranjeiras, velhas companheiras de quem vive do que a terra dá.

Todas as quintas-feiras, como quem cumpre um rito antigo, a Dona Julieta — que me conhece desde que aprendi a andar de sandálias pela calçada — pergunta com aquela doçura das mulheres que viram o tempo passar com vagar:
“Menina, quer laranjas?”

E eu, que ainda sou menina aos olhos dela, não sei dizer que não. Porque nessas laranjas vem muito mais do que sumo e polpa: vem a infância, vem o cheiro do quintal, vem o doce da merenda e o sabor dos domingos em que se fazia bolo de laranja com as cascas raladas à mão. Vêm as mãos da minha mãe, da minha avó... e o mundo parece mais doce, mais calmo, mais certo.

   Foto: Ruralea

As Laranjas da Vilariça – Um Tesouro Transmontano

A Vilariça, esse vale escondido entre Torre de Moncorvo e Vila Flor, é uma terra de abundância. As suas laranjas são pequenas jóias redondas, sumarentas, com uma casca fina e brilho natural que envergonha qualquer fruto importado. Diz-se que os fidalgos da região as disputavam nas mesas de banquete e que as senhoras, finas de trato, as usavam para perfumar as mãos e adoçar a alma.

As primeiras referências às laranjeiras no norte de Portugal remontam ao século XVII. Já então, autores como D. Francisco Manuel de Melo referiam o seu uso em doces conventuais e refrescos perfumados. Na região de Trás-os-Montes, adaptaram-se como tudo: com carácter, força e doçura.

As Virtudes da Laranja

A laranja é alimento e remédio. Traz no seu seio:

- Vitamina C, que dá vigor e resistência;
- Fibras naturais, boas para o ventre e para o sangue;
- Água em abundância, que refresca o corpo e lava as mágoas;
- E um perfume que, dizem os antigos, alegra o espírito e clareia o pensamento.

A sua casca, ralada ou em calda, era usada para curar indisposições e trazer sorte aos recém-nascidos, quando colocada debaixo do travesseiro.

Torta de Laranja à Moda Antiga


📜 Inspirada nas receitas conventuais do séc. XVIII, como descritas no livro 'Arte de Cozinha' de Domingos Rodrigues (1680), mestre de cozinha da Casa Real.

·       Ingredientes:

·       12 gemas de ovos

·       2 ovos inteiros

·       250 g de açúcar

·       Raspa de 2 laranjas da Vilariça

·       Sumo de 2 laranjas

·       1 colher de sopa de farinha de trigo

·       Manteiga e açúcar q.b. para untar e polvilhar

Modo de preparação:

1. Misture bem os ovos, as gemas e o açúcar com uma vara de arames (sem bater em demasia).
2. Junte a raspa e o sumo das laranjas e, por fim, a farinha peneirada.
3. Deite a mistura num tabuleiro forrado com papel vegetal untado com manteiga.
4. Leve a forno quente (200ºC) cerca de 15 a 20 minutos.
5. Retire, vire sobre um pano polvilhado com açúcar e enrole com cuidado.
6. Sirva fria, com um ramo de hortelã ou flores de laranjeira para enfeitar.

 

Laranja dos Fidalgos – Doce de Cristal e Sol


📜 Variante inspirada nos doces de fruta descritos no livro 'Doçaria Portuguesa' de Maria de Lourdes Modesto.

·       Ingredientes:

·       4 laranjas da Vilariça (de casca espessa)

·       400 g de açúcar

·       Água q.b.

·       Pau de canela (opcional)

Modo de preparação:

1. Lave bem as laranjas e corte-as em fatias muito finas, com casca.
2. Ferva-as em água durante 2 minutos. Repita o processo 3 vezes, mudando a água, para lhes tirar o amargor.
3. Prepare uma calda de açúcar com 400 g de açúcar e 300 ml de água. Junte um pau de canela, se desejar.
4. Introduza as rodelas na calda e deixe ferver em lume brando durante 30-40 minutos, até ficarem translúcidas.
5. Deixe arrefecer na própria calda. Sirva com pão de ló ou com um cálice de vinho do Porto.

E assim, minha gente querida, entre palavras doces e laranjas de ouro, vos deixo estas receitas que têm tanto de antigo como de eterno.
Se algum dia vos perguntarem, como a Dona Julieta me pergunta:
“Menina, quer laranjas?”

Digam que sim. Sempre que sim. Porque com elas vêm histórias, sabores e pedaços da nossa terra que não se podem esquecer.


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