A Magia da Alheira de Mirandela: Um Ritual de Sabores e Tradição
A Magia da Alheira de Mirandela: Um Ritual de Sabores e Tradição
Podia escrever sobre muitas outras coisas, mas falar da Alheira de Mirandela é como regressar a casa, ao calor da lareira e aos aromas que embalam a memória. É a minha zona de conforto, o elo que me liga às minhas raízes, um saber que me foi passado de geração em geração.
Nasci rodeada pelo fascínio da cozinha e, por mais que aprenda, sou insatisfeita de nascença. A busca pelo aperfeiçoamento nunca cessa, o desejo de saber mais é insaciável. E, entre tantos segredos da culinária transmontana, há um que nunca perdeu o seu encanto: a alheira.
Muito se fala da sua história, da sua origem enraizada na necessidade e na astúcia. Diz-se que, em tempos de inquisição, era feita apenas com carnes de aves para ludibriar os olhos inquisidores. António Manuel Monteiro e Virgilio Nogueiro Gomes, falam com mestria sobre esta transmontanice. Algumas das suas obras são verdadeiros relicários de cultura gastronómica.
Mas entre factos e crenças, uma coisa é certa: a alheira nunca foi apenas um enchido, mas sim um testemunho da resiliência e do engenho do povo.
Na minha família, a receita sempre teve um toque próprio. Galinha, pato e porco bísaro, criados em casa, alimentados com os restos generosos que a terra nos dava. O azeite vinha das nossas oliveiras, a banha era obtida no dia do culto da matança. Nada se desperdiçava, tudo se aproveitava, porque cada produto tinha uma história e um propósito.
Mas fazer alheiras não é apenas seguir uma receita, é cumprir um ritual, reviver gestos que atravessam gerações. Antes mesmo de se pensar na alheira, havia o pão. O pão que se fazia dias antes, com farinha selecionada, fermento-mãe amadurecido ao longo de vários dias e um sal quase tímido. O mesmo pão que daria corpo e textura ao enchido, era aquele que sabíamos, só pelo toque, se estava pronto. Porque há farinhas que bebem mais, e outras que bebem menos, e os olhos e as mãos treinadas sabem a diferença.
O ritual começa cedo. As tripas já estão lavadas e cheiram agora a água ardente, cozem-se as carnes, descascam-se os alhos, parte-se o pão. São gestos tão nossos, tão transmontanos, que só um transmontano entenderá. Fazer alheiras não é apenas cozinhar, é um ato de resistência, um grito silencioso que mantém viva a tradição.
Na minha vida, 25 anos foram passados na indústria da alheira, numa fábrica que ainda hoje guarda o nome da minha mãe. Mas, por mais máquinas e processos modernos que existam, o verdadeiro encanto ancestral está no ritual caseiro, aquele que nunca deixei de cumprir.
Depois de tudo pronto, chega o momento solene da feitura. À volta da caldeira, as mãos experientes enchem as tripas, atam-nas com precisão, passam-nas por água quente para retirar os excessos de massa. Pendura-se cada alheira no estendal do fumeiro, onde se renderão ao calor e ao aroma da lenha de oliveira, carvalho ou azinho. E ali ficam, dias a fio, até que alguém olhe para elas e, num sussurro quase cerimonial, diga:
“Não estará na hora de provar ?!”
E assim se cumpre mais um ano, mais uma tradição, mais um pedaço da minha história, da nossa história.
E as sopas de alheiras com ossinhos da suã? Ah, mas essas merecem um capítulo à parte…
Este texto nasceu da minha história — e também do desejo de preservar um saber que ainda vive.
Se te tocou… convido-te a continuar este ritual comigo.
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Criei um guia para fazeres alheiras em casa, como antigamente:
simples, com alma, e com tempo.
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