Filhoses Fora de Época – Saberes que Se Guardam nas Mãos
Filhoses Fora de Época – Saberes que Se Guardam nas Mãos
Ontem, a Augusta ligou-me.“Oh Sónia… apeteciam-me umas filhoses.”
Ri-me. Maio ainda ia a meio, e as filhoses, para mim, sempre foram coisa de dezembro, de Natal, de casa cheia e do cheiro da canela no ar.
Mas a verdade é que estava cansada, colada ao ecrã há horas, com a cabeça cheia de tarefas e ideias por fechar. Aquele telefonema foi como um empurrão doce do destino. Larguei tudo. E fui fazer filhoses.
Abri o meu velho caderno de receitas — aquele que guarda a caligrafia lindissima da minha avó Aurélia e as anotações apressadas da minha mãe — mas não segui nada à risca. Segui o coração. Usei o que tinha. Porque as verdadeiras receitas são aquelas que se fazem com memória, com instinto… com alma.
Enquanto a carne se fazia nas brasas lá fora, e os meus filhos preparavam uma salada, eu e a Augusta retomámos os papéis antigos: ela a ajudar, eu a guiar, como vi tantas vezes a minha mãe fazer.
E foi nesse momento que ela me veio à memória, viva como nunca:
A minha mãe estendia a massa com uma leveza que me maravilhava. As mãos pequenas, mas firmes, sabiam exatamente o quanto puxar, quanto virar, quanto esperar.
Ela dizia-me, baixinho:
“Filha, a massa responde. Se a ouves bem, ela diz-te quando está pronta.”
E ao fritar? Ah, isso era ciência e arte! O azeite à temperatura certa — nem muito quente, nem tímido — a mão com jeito para virar sem furar, e aquele silêncio respeitoso entre cada leva. O som das filhoses no azeite era quase um cântico. E o cheiro… o cheiro a canela no ar… Esse sim, traz o Natal mesmo em maio. Traz as vozes da família, o tilintar dos talheres e os guardanapos bordados sobre a mesa.
As filhoses de ontem estavam magníficas. Talvez porque se fizeram fora de época. Talvez porque se fizeram com conversa mansa, filhos ao redor, Augusta ao meu lado. Ou talvez — e é o que eu acredito — porque o saber da minha mãe ainda vive em mim, cada vez que frito com alma e estendo com amor.
Não vos deixo a receita — dessa vez, foi feita de instinto. Mas deixo-vos algo mais valioso: a lembrança de que cozinhar é, muitas vezes, um reencontro com quem já nos ensinou tudo sem nunca ter dito nada.
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