Do Galo, do Forno e da Saudade que Cheira a Carqueja
Do Galo, do Forno e da Saudade que Cheira a Carqueja
Diz o povo que em Maio comem-se as cerejas ao borralho.
Mas aqui em casa, cerejas não havia. Havia um galo.
Não tínhamos borralho… mas fizemos.
Foi meu João que me disse, com aquele brilho nos olhos que só os sabores da infância despertam:
“Mãe, apetecia-me um arrozinho de forno... daqueles com sabor a carqueja.”
E eu, que guardo mais memórias em cheiro e sabor do que em fotografias, fui logo parar à cozinha da minha avó Maria.
A minha avó era moleira. Mulher de força silenciosa e mãos de farinha, não lhe custava acender o forno nem amassar o pão. Trazia sempre um pano na cintura e um olhar terno de quem sabia alimentar mais do que o corpo.
Com ela aprendi a gostar do cheiro do forno quente. Do estalar da lenha. Do tempo que demora o pão a crescer. E, sobretudo, aprendi que cozinhar é guardar as pessoas dentro de nós.
Poucas memórias me restam da sua presença, mas há uma que nunca me deixou: o pão barrado com azeite e açúcar. Ai, que tentação.
Era doce e salgado, quente e reconfortante — como o colo que nos fica mesmo quando já partiu.
Mas hoje não é de pão que vos falo. Hoje falo-vos de um galo. Veio da aldeia, criado ao ar livre, com tempo e com sol.
Temperei-o com o que tinha de melhor: azeite generoso, dentes de alho esmagados, sal e cebola cortada fina. Louro do meu quintal. E um pimentão de La Vera — oferta preciosa de um amigo que passou por Espanha. Juntei-lhe um toque de malagueta, porque cá em casa, todos gostam do picante da vida.
Assentei-o no tabuleiro, ladeado de batatas, coberto de aromas, e preparei um arroz para lhe fazer companhia. Arroz de forno, daqueles que se come com colher de pau e vontade de repetir.
Não era domingo. Mas era o dia possível. O dia em que se junta a família à volta da mesa sem olhar para o relógio. O dia em que o forno substitui o tempo e o cheiro a comida quente enche a casa de sentido.
Duas horas depois, a mesa estava posta. E o respasto servido. Com silêncio grato. Com olhos que brilham. Com memória que se repete.
Hoje não foi só o galo que se assou. Foi o passado que se aqueceu de novo, à mesa de quem sabe que cozinhar também é lembrar. Mais do que uma receita, um tributo à ancestralidade e aos domingos possíveis em qualquer dia da semana.
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