Dos Cuscos, da Paciência e da Alma que se Guarda na Panela
Dos Cuscos, da Paciência e da Alma que se Guarda na Panela
Hoje, ao almoço, fi-lo… Cozinhei cuscos cá em casa.
Não tenho panela de ferro, nem lume aceso no borralho, nem o cheiro do fumo a dançar pelas paredes da cozinha. Mas trago comigo os saberes antigos, herdados sem alarde, de mãos caladas que me ensinaram mais do que palavras.
Fi-los há quinze dias atrás, com as minhas próprias mãos, em quietude quase sagrada. Amassei, rolei, rezei em silêncio. Sequei-os ao sol, como manda a tradição, estendidos em panos brancos no adro da varanda, recebendo o calor e o tempo com humildade.
Hoje, numa panela modesta, dei-lhes vida. Água (três vezes o volume dos cuscos, mais coisa menos coisa...), um caldo esquecido no frigorífico – de galinha e legumes – meia cebola picada com vagar, uma linguiça cortada aos cubos e um punhado de coentros, porque adoro o seu aroma verde que me lembra a infância. Acrescentei um toque de pimento, vermelho e vibrante, como a alegria que se sente quando a família se junta à mesa. E deixei tudo cozinhar... em lume brando.
Porque os cuscos, como as boas conversas e os grandes amores, não suportam pressa.
Enquanto os grãos inchavam, macios e respeitosos, pensei nas mulheres que antes de mim fizeram este prato – nos serões de Vinhais, onde as mãos sábias moldavam os cuscos com farinha de trigo barbela, água e sal. Era um trabalho de paciência, de comunhão. Rolavam-nos em alguidar de barro, com movimentos circulares e canto baixo, quase oração. Depois, vinham os dias de sol, em que se espalhavam os grãos sobre os panos para secar ao ar livre, vigiados por olhares atentos e por gatos vadios que não ousavam mexer.
Era ali, sob o céu de Trás-os-Montes, que os cuscos ganhavam corpo e alma.
Dizem os entendidos, e os estudiosos do saber popular — que os cuscos transmontanos vieram do tempo dos mouros. E eu acredito. Porque este prato tem o peso da história, da poeira das estradas, das trocas de mão em mão. Não é cousa de moda, é cousa de raiz.
Hoje, fiz os meus à minha maneira. Sem grande ciência, mas com tudo o que me foi deixado por legado. Guardei religiosamente cada passo, como quem vela um segredo antigo.
A receita partilho-a convosco, simples e honesta:
- 1 caneca de cuscos secos (de preferência dos que se compram à grande fazedeira de Vinhais);
- 3 canecas de caldo aromático;
- meia cebola picada;
- 1 linguiça às rodelas ou aos cubos;
- um cibo de azeite;
- coentros frescos;
- e um toque de pimento vermelho.
Tudo em lume baixo. O refogado ganha vida...E depois, é só esperar. Ter paciência. Sentir o cheiro a subir da panela. E preparar a mesa com amor.
Porque os cuscos não se comem só com a boca – comem-se com a memória, com a saudade e com a certeza de que, à volta da panela, ainda se cozinha o que somos.
E porque o gosto pela escrita me corre nas veias, gosto tanto de guardar memórias de dias bonitos.
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